Maria: o poder e os bens devem ser para todos, nada de oligarquia ou oligopólios.

A concepção cristã sobre o poder político e outros poderes, tal como sobre OS BENS, foi resumida no cântico popular de Maria, o “Magnificat”

O “Cântico de Maria”, o “Magnificat”, foi registrado no Evangelho de São Lucas (1,46-55).

Maria compôs este cântico ao ouvir de Isabel que seria mãe do Libertador, do Redentor do povo.

Como ensinou o padre Gustavo Gutierrez, os teólogos da libertação consideram o hino de Maria como o hino da teologia da libertação.

Vejamos o núcleo do texto do “Cântico” (cf. Lc 1,46-55):

“Então Maria disse: Minha alma elogia o Senhor; meu espírito exulta de alegria” (…) A Sua bondade se estende de geração em geração… Ele interveio com toda a força do seu braço [cf. Salmo 118,15-16];

dispersou os soberbos com os desígnios que eles conceberam” [com seus planos], “derrubou dos tronos os potentados” [os que monopolizam o poder] “e exaltou [elevou] os humildes [o povo]; encheu de bens os famintos, e aos ricos despediu-os de mãos vazias”.

Assim, Maria, no início do cântico, exprime sua “alegria” por ver que “a bondade” de Deus se entende de “geração em geração”. O ideário ético e político de Maria é claro como a luz do sol, apontando para uma democracia popular, distributista, cooperativista, econômica etc.

Nossa Senhora elogia as seguintes condutas, consideradas como condutas queridas por Deus, que Deus busca realizar pela mediação humana:

1ª) a derrubada dos potentados [poderosos, monopólio do poder, oligarquia] dos tronos;

2ª) a elevação dos humildes [pessoas simples, trabalhdores] ao poder, à participação no poder;

3ª) encher os pobres (necessitados) de bens, ou seja, a atribuição (posse, controle, poder) dos bens aos necessitados (“a cada um de acordo com suas necessidades”, cf. “Atos dos Apóstolos”, 2, 45; e 4,35); e

4ª) a retirada dos bens (supérfluos) dos ricos, pois pertencem por direito natural aos necessitados, já que os bens foram feitos para todos, pelo princípio da destinação universal dos bens.

A lição política de Maria é clara: é agradável aos olhos de Deus, sendo praticamente uma ação divina e que ocorrerá profeticamente no futuro, as condutas elencadas acima, elogiadas por Maria e consideradas como práticas divinas.

Em outras palavras, o poder legítimo é o poder comprometido com os “mais pobres e necessitados”, para realizar transformações para assegurar vida plena para todos.

As pessoas se salvam na medida em que pautam suas condutas e vidas, conformam suas consciências, em prol do atendimento das necessidades do povo (cf. lição de Cristo, em Mt 25).

Os atos humanos, para serem bons, devem ser racionais e em adequação ao bem comum, devem ser atos para ajudar o povo. Esta estrutura ética vale para cada pessoa e especialmente para o Estado, a pessoa jurídica criada justamente para este fim: para assegurar e proteger o bem comum (atender às necessidades, difundir os bens que atendem às necessidades de todos).

Os bispos latino-americanos, junto com o Papa João Paulo II, que aprovou o texto de “Puebla”, interpretaram este texto, destacando que “a salvação” depende do “compromisso autêntico” “especialmente pelos mais pobres e necessitados e pela necessária transformação da sociedade” (cf. documento de “Puebla”, n. 1.144).

Maria, após a morte de Cristo, ficou com São João Apóstolo, praticamente seu filho adotivo (cf. Jo 19,27). São João foi bispo com jurisdição inclusive sobre as sete principais igrejas da região. São João era irmão de São Tiago Maior e estes dois irmãos pescavam com São Pedro, tendo sido recrutados por Jesus (Cristo pescava com São Pedro, São João e São Tiago Maior). São Tiago Maior foi morto por Herodes, nove anos depois da morte de Cristo. São Tiago Menor, filho de Alfeu, foi outro apóstolo, o primeiro bispo de Jerusalém e autor da “Epístola de São Tiago”, da Bíblia.

Mais tarde, Maria e São Jõao foram para a cidade de Éfeso. Em Éfeso ainda há a casa onde Maria e João teriam vivido (cf. discurso de Paulo VI, em 1967). Maria subiu ao Céu em 42 d.C.. São João Evangelista teria morrido em Éfeso ou em Roma, cozinhado vivo numa caldeira de azeite, por ordem de Domiciano, lá por 94 d.C.. Tudo indica que morreu em Éfeso. Maria teria, quando subiu ao Céu, uns 45 anos. 

Éfeso foi fundada em 1050 a.C. e destacava-se pelo porto, competindo com Mileto. Éfeso, em 546 a.C, ficou sob o controle da Pérsia (que influenciou Heráclito) até Alexandre o Grande, em torno de 320 a.C. Depois disso, esteve basicamente sob o controle oriental (dos selêucidas, com capital em e de Pérgamo), até cair sob o poder de Roma. Os romanos criaram a província da Ásia (usando o termo Ásia de forma restritiva) e Éfeso era a capital desta província.

No tempo de Cristo, as principais cidades eram Roma, Alexandria, Antioquia, Tarso, Éfeso e Corinto. Nestas cidades existiam colônias de judeus e foram as cidades principais de difusão do cristianismo, junto com outras cem cidades menores, a maior parte na Ásia Menor.

A região da Ásia Menor era toda banhada pela cultura helênica, persa, semita e semeada de colônias hebraicas, por conta da diáspora anterior (de 22 e de 597 a.C.) e da diáspora helenística. Nesta região, o estoicismo nasceu e cresceu, dentro do caldeirão cultural semita.

O estoicismo nasce na área cultural ligada a Tarso e Chipre, desenvolvendo-se principalmente na Síria, na Ásia Menor e no Egito. Mesmo em Roma, existiam milhares de hebreus. Horácio menciona uns oito mil hebreus e talvez existissem bem mais.

O estoicismo foi a principal escola ética adotada, mais tarde, pelos primeiros Santos Padres, dando continuidade aos esforços de Aristóbulo, Fílon e dos fariseus (a “Mishnah” critica o epicurismo, não os estóicos). Os hebreus concentraram seus esforços na elaboração de textos éticos e, nesta linha, o estoicismo tinha ampla identidade. Os hebreus sabiam que a Lei de Moisés era uma expressão da Lei, do Logos, o mesmo Logos ou Razão divina que os estóicos amavam e se dedicavam a estudar.

A influência estóica está clara em São Panteno e em São Clemente de Alexandria. Está bem presente nos textos da Escola de Antioquia, nos textos de Diodoro de Tarso, o mestre de São João Crisóstomo. O fundador da Escola de Antioquia era aristotélico, com idéias do estoicismo.

A “Didaqué” é um documento que mostra bem como os primeiros cristãos elaboraram uma síntese de idéias hebraicas com o melhor da Paidéia, especialmente as idéias éticas do estoicismo. Como veremos mais adiante, na “Carta a Diogneto”. A “Didaqué” foi redigida, como é ensinada por vários especialistas como Crossan, com bases nas fontes cristãs antes dos quatro Evangelhos.

Mesmo antes do cristianismo, existia uma corrente hebraica alexandrina e egípcia, com nomes como Aristóbulo e Fílon, mas também com os terapeutas e em ligações com os essênios. Além disso, há no texto da “Septuaginta” já uma síntese entre idéias hebraicas e idéias da Paidéia.

Existia uma corrente hebraica síria, em torno de Antioquia e Damasco. Outra corrente hebraica babilônica, assentada dentro do Império Parta. Estas correntes influenciavam a maior parte dos hebreus, porque mais de dois terços dos hebreus moravam fora de Jerusalém. No entanto, influenciavam também o pensamento dos hebreus na Palestina, por conta das viagens religiosas dos hebreus até Jerusalém e das comunicações entre os hebreus.

Mais tarde, as primeiras correntes do cristianismo são permeadas por estas correntes anteriores, formando a Escola de Alexandria com base na Escola de Fílon e a Escola de Antioquia, com base na escola hebraica anterior daquela região, mais ligada ao estoicismo. Há ainda outro ramo babilônico, ligado aos Partas e ao masdeísmo (este ramo geraria o “Talmud” da Babilônia lá por 480 d.C.). Houve também correntes mais ligadas a Jerusalém, de mistura destas outras. Esta última durou até 70 d.C., quando há a destruição da cidade, por Vespasiano e Tito.

O estoicismo também tem raízes profundas em Alexandria, especialmente em São Clemente de Alexandria, dando continuidade aos textos de Fílon (este seguia o estoicismo na parte ética e o platonismo na parte filosófica, demonstrando já a ligação destas idéias com as idéias hebraicas, bíblicas).

Estrabão (63 a.C. a 24 d.C.), na “Geografia” (14.5.641.663) diz que Éfeso era um grande empório da Ásia Menor. De fato, Éfeso tinha uns 200.000 habitantes, sendo bem maior do que Atenas, Corinto, Antioquia e outras cidades. Éfeso só perdia, em habitantes, para Roma, Alexandria e Tarso.

Éfeso foi o lar de Maria, até 42 a.C.. Mais tarde, tornou-se o principal centro da cristandade, depois da destruição de Jerusalém, em 70 c.C. Estrabão também ensina que os principais centros filosóficos, em sua época, eram Tarso, Alexandria e Atenas, embora Éfeso tivesse uma tradição filosófica também antiga, ligada a Heráclito e aos persas. Em Tarso, a cidade de São Paulo, havia uma tradição estóica forte, mesclada com idéias persas e de Heráclito.

Heráclito nasceu em 540 e morreu em 470 a.C, em Éfeso. Desde o nascimento, Heráclito viveu numa cidade banhada pela cultura e pelo poder persa, que tinha como religião oficial o zoroastrismo, o masdeísmo (“a religião da luz”, cf. Hegel, do “bem”, do “fogo”). São Justino (100-165 d.C.), na “Apologia”, elogiou Heráclito e Sócrates, o que é bem sintomático.

A concepção ética e sobre o fogo (e a luz, que a física da época considerava praticamente uma manifestação de Deus), de Heráclito, adotada em muitos pontos pelos estóicos, tem idéias comuns ao masdeísmo (zoroastrismo). Isto fica claro nos textos que sobraram do “Avesta” e nos textos sobre o zoroastrismo, que Hegel analisou nos cursos que dava, tendo as notas destes cursos gerado o livro “Lecciones sobre filosofia de la religión” (Madrid, E. Alianza, 1987, sobre a “religião da luz”).

Heráclito de Éfeso, a terra onde Maria foi viver, ensinou o núcleo do jusnaturalismo adotado pela Igreja, com as frases (proposições) seguintes: há uma “coerência subjacente das coisas”, graças ao “Logos”, que atua na “ordenação comum” dos seres. É “preciso seguir o comum” (o universal, o que a razão de todos aponta, o que o logos presente em todos ensina), pois o “Logos” (a razão) é “comum”. A vida é um devir, um fluir, como um rio da vida, onde caminhamos, navegamos, devendo a vida ser ordenada pelo “logos”, pela razão, pela natureza, pois Deus (o “Único”) expressa suas idéias pela natureza, pela razão humana. Cada pessoa se torna inteligente “por inalação da Rrazão divina”, pelos “canais da percepção”, pelo “poder do raciocínio”.

Deus “manifesta-se por sinais”, pelas boas idéias e bons afetos. Assim, devemos nos “apoiar” “no que a todos é comum, como uma cidde deve apoiar-se na lei”, “pois todas as leis humanas” justas “são alimentadas por uma só, a lei divina”. Logos comunica-se com as “almas ígneas”, de fogo, de luz, e as idéias destas pessoas, dos sábios, são luzes que Deus fornece para a boa regência da vida pessoal e social.

Depois da destruição de Jerusalém em 70 d.C, Éfeso, segundo Russell Norman Champlin, no “Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia” (São Paulo, Ed. Hagnos, vol. II, p. 287), “tornou-se o centro cristão mais importante da época” e era a cidade onde Maria tinha vivido.

São Paulo “passou ali três anos” (cf. Col 1,7 e 2,1) e usava a cidade como “sua sede de operações na Ásia Menor”. Quando deixou a cidade, São Paulo deixou Timóteo (cf. I Tim 1,3).

A cidade de Éfeso foi sede de vários Concílios importantes na vida da Igreja. Por exemplo, o 3º. Concílio ecumênico, em 431 d.C., com uns duzentos bispos, que condenou o nestorianismo. Neste Concílio, foi ensinado a unidade pessoal de Cristo (uma pessoa, com natureza divina e natureza humana) e, em conseqüência, foi declarado que Maria, que vivera ali, em Éfeso, era também a “Mãe de Deus” (“Theótokos”).

A Igreja, para refutar a heresia gnóstica e especialmente o docetismo, destacava, pela palavra de São João Evangelista, que Cristo veio “na carne”, sendo este o argumento para refutar os erros gnósticos e docetistas.

O ensinamento sobre Maria, no Concílio de Éfeso, é simples, como o próprio Champlin (teólogo protestante semi-ecumênico, autor de mais de 60.000 páginas) reconheceu: “a idéia é” que “Maria” é “mãe de Jesus Cristo”. Jesus que tem dupla natureza e uma pessoa, pois Cristo é totalmente humano e também “Deus”. Por esta razão, pela natureza una de Cristo (que prenuncia nossa união com Deus, cf. Hegel), Maria pode ser chamada de Mãe de Deus, o que não significa que “Deus tem mãe”. Maria é mãe de Deus porque é mãe de Jesus Cristo, que é 2ª. Pessoa da Trindade, encarnada. Porque a pessoa de Cristo tem, em si, a natureza puramente humana e também a natureza divina. Por isso, os cristão são humanistas, são antropocêntricos, tal como teocêntricos (na mesma linha em que os hebreus são democráticos e teocratas). Como fica claro, as verdades em relação a Maria são verdades humanistas, que reforçam o humanismo cristão.

Conclusão: os bens são destinados por Deus a todos. Todos os bens, inclusive os poderes, especialmente o poder público.

Todos devem ter participação nos bens e no poder público, como foi destacado por Santo Ambrósio, São Basílio, São Tomás de Aquino, São Tomás Morus e outros expoentes da Igreja, que apenas repetiram as lições da Bíblia e do melhor da Paidéia.