Os melhores marxistas escreveram textos defendendo a ética cristã e judaica

Jules Guesde e Maurice Thorez reconheceram a ética (ideias práticas sobre o que fazer e não fazer) do cristianismo primitivo como uma das fontes do socialismo e do comunismo.

No livro “Sobre la religion” II, organizado por Hugo Assmann e Reyes Mate (editado pela Ediciones Sígueme, em Salamanca, Espanha, 1975), há vários textos sobre religião, escritos por Bebel, Lafargue, Dietzgen, Jaurès, Sorel, Kautsky, Labriola, Korsch, Togliatti, Rosa de Luxemburgo e outros socialistas.

Estes textos mostram a influência do cristianismo sobre as principais ideias do socialismo, que usa pilhas de textos e ideias cristãs. 

Há um texto, retirado de um livro de Maurice Thorez, que vale a pena transcrever. Thorez é tido como o pai da política de mãos estendidas aos cristãos. Nasceu em 1900 e faleceu em 1964. Foi nomeado secretário geral do Partido Comunista Francês, em 1930. Em 1947, foi Ministro de Estado, no primeiro governo do católico De Gaulle. Merece a gratidão por parte dos católicos, por ter auxiliado a diminuir o anticlericalismo no PCF.

Maurice Thorez, no livro “A França da frente popular e sua missão no mundo”, retirado do informe apresentado no IX Congresso do PCF, em Arles, em 25.12.1937, escreveu:

Junto com as palavras de Engels sobre o papel do cristianismo primitivo que citamos na Mutualidade, e que acarretaram algumas críticas bastante vivas, acrescentaremos estas declarações de Jules Guesde na tribuna do Palais-Bourbon, em 24 de junho de 1896.

“A um interpelador de direita que o acusava de clericalismo – vê-se como não fomos nós os primeiros a nos expormos a estes ataques, não é verdade? – Guesde, o apóstolo do socialismo na França, lhe respondeu:

Não creio nem me inquieta essa acusação de clericalismo; no entanto, sou mais justo com o cristianismo, com o grande passado da Igreja católica, que esses membros do Centro com o qual vos confundis cada vez mais vossos votos”.

Guesde ainda dizia:

Nos repugna o papel de acusadores públicos contra a série de séculos que estão atrás de nós. Não desconhecemos nem insultamos nenhuma das diferentes fases da evolução social. As classificamos, proclamando sua razão de ser sucessiva e fazendo-lhes sucessivamente justiça.

“Assim foi como no século XIII a Igreja – não temos nenhuma dificuldade em confessá-lo – desempenhou uma missão muito grande e muito útil.

“Foi ela que, levantando-se contra os homens forrados de ferro de então, não somente no físico, senão na moral, surgiu como a única potência intelectual capaz de impor um limite, um freio, ao menos relativo, às brutalidade e violências de cada dia”.

“E não é estranho que alguns socialistas, alguns comunistas formados na escola de Guesde e de Cachin, observem uma atitude justa diante dos trabalhadores católicos. (…)

“Leon Blum fez a um semanário católico estas declarações, que não chegaram no entanto ao conhecimento dos operários socialistas nos periódicos de seu partido:

Perguntais se creio possível uma colaboração entre católicos franceses e o governo da frente popular. Sim, acredito que é possível…E posto que é possível, não estarão de acordo os católicos franceses que isso é desejável?”.

“Os desejos de Leon Blum se realizaram pelo menos parcialmente, já que sentou a seu lado no governo da frente popular o católico Felipe Serre. Então, será que para alguns é possível esta colaboração no governo e não na fábrica nem na aldeia? Aprovariam eles ao partido operário belga, ao partido que dá seus presidentes à II Internacional, e que desde faz vinte anos pratica quase sem intermitência uma política de coalizão governamental com os conservadores católicos? E desaprovariam aos operários comunistas da França que estendem a mão a seus irmãos, o operários cristãos?

“Os que “proclamam o ateísmo como um artigo de fé obrigatória” vão pedir, então, que se exclua do partido socialista ao cidadão Philip, deputado de Lyon e cristão militante? Vão acusar ao Partido Trabalhista, cujos dirigentes lêm com maior agrado a Bíblia que O capital?”.

Jules Guesde foi preso em 1878, quando estava auxiliando a organização de um congresso internacional de operários, em Paris. Guesde foi interrogado em 24.10.1878, perante a 10ª Câmara Correcional. Ao defender-se, acusou a burguesia de confiscar os direitos subjetivos positivos decorrentes da Revolução Francesa e disse:

ou a sociedade está fundada na justiça, na igual repartição entre todos dos encargos e vantagens, na igual satisfação das necessidades de cada qual” “ou a sociedade está fundada no monopólio… e na exploração que deriva dele, de um maior número por alguns; e , nessa sociedade, que só uma minoria tem interesse em conservar, a ordem é uma questão de força; é o arbítrio e a violência…” (texto retirado do livro “A defesa acusa…”, de Marcel Willard, Editorial Calvino, Rio de Janeiro, 1946).

As palavras de Guesde, transcritas acima, são perfeitamente harmônicas com a fé cristã, especialmente na parte concernente à justiça social e distributiva, que exigem que os bens sirvam (seja controlados, atribuídos, usados) por todos, para satisfazerem as necessidades de cada um, dando a todos uma vida digna e feliz.

Guesde continuou a defesa, citando a frase de Mazzini: “os direitos não passam de palavras vãs para aqueles a quem faltam os meios de fazê-los valer”. E reivindicou o direito de “cada homem para um gozo igual do patrimônio da humanidade, restituído à humanidade” (ou seja, o domínio eminente da sociedade ou bem comum).

O termo “patrimônio da humanidade” tem clara raiz bíblica, pois, como apontaram vários Papas (inclusive Leão XIII), Deus deu todos os bens às pessoas, a humanidade, para que todos vivam felizes. O termo “restituído” vem de restituir, ou seja, entregar os bens a quem de direito, a quem tem o direito natural aos bens (ao povo, na medida das necessidades para uma vida digna). A restituição é também um termo cheio de religiosidade, que consta em várias passagens bíblicas.

Guesde queria “o sufrágio na oficina, a República no domínio econômico”. Ou seja, queria o controle dos trabalhadores sobre os meios de produção, o primado do trabalho, como consta claramente no “Gênesis” (subjugai os bens…). São ideais profundamente cristãos, que Maritain e Alceu não hesitariam em assinar embaixo.

Leon Blum definiu o socialismo (na “Revue de Paris”, de 01.05.1924), como a doutrina que pretende “reduzir o sofrimento e a desigualdade até seu resíduo incompressível, e instalar a razão e a justiça onde hoje reinam o privilégio e o acaso”.

Os melhores textos de Blum também são perfeitamente coerentes com o cristianismo.

Thorez exerceu uma boa influência no PCF e o crescimento do mesmo, creio, tem muito a haver com esta política de mãos estendidas, de mãos abertas, de diálogo e de ecumenismo (de respeito ao pluralismo, às diversas fontes do socialismo).

Na Itália, Palmiro Togliatti (1893-1964), co-fundador do jornal “Ordine Nuovo”, em 1919, com Gramsci, teve papel semelhante. Após a prisão de Gramsci, Togliatti lidera o Partido Comunista na Itália, como secretário geral do partido. O PCI, em 1956, graças a Togliatti, superou bem a crise do XX Congresso do PCUS, indo além da desestalinização. No final da vida, Togliatti emitiu vários juízos favoráveis sobre o trabalho conjunto com os cristãos. O “testamento de Togliatti”, um memorando que ditou pouco antes de morrer, tem boas críticas ao socialismo soviético.

Togliatti, líder do Partido Comunista Italiano, deixou claro, durante a II Guerra Mundial e em várias ocasiões (como Fidel Castro o faria mais tarde) que a consciência religiosa não é avessa ao socialismo humanista: “Não é verdade que a consciência religiosa traga, necessariamente, obstáculos à compreensão e à realização dos deveres e perspectivas (da construção do socialismo) e à adesão a este combate” (março de 1963).

Togliatti aproximou os comunistas e socialistas da religião e da Igreja.

Enrico Berlinguer seguiu a mesma linha.

Os textos de Berlinguer sobre saúde pública, especialmente as políticas preventivas e sobre a reforma sanitária são também excelentes, tendo como seguidor, no Brasil, dentre outros, o Senador Tião Viana, do PT do Acre.

Pio XI, em dezembro de 1937, escreveu aos bispos franceses sobre a política de mãos estentidas (“main tendue”):

Aos católicos franceses fala-se muito da mão estendida…Podemos apertar esta mão estendida? Gostaria muito de fazê-lo. Não se recusa uma mão estendida. Mas não se pode fazer isso em detrimento da verdade. A verdade é Deus. E não se pode sacrificar Deus. Agora, os que falam da mão estendida não se declaram inequivocamente sobre este ponto. Em sua linguagem há confusões e obscuridades que deveriam ser esclarecidas. Colhamos pois sua mão, para levá-la para a doutrina divina de Cristo”.

Maritain elogiou a resposta de Pio XI, que defendia o diálogo, a necessidade de esclarecimentos e distinções (seria bom se esta linha tivesse sido mantida e ampliada, mas, infelizmente, Pio XII cerceou, na década de 50, a experiência dos padres operários).

Mounier esforçou-se por ampliar o diálogo entre católicos e marxistas.

Depois do XX Congresso do PC da URSS, o diálogo foi um pouco ampliado. Embora Kruchov tenha em alguns pontos reforçado a pregação do ateísmo e do anticlericalism, mas Kruchov teve, no final das contas, um papel positivo. Após a derrubada de Kruchov, a URSS ficou ainda mais burocrática e estagnada.

Robert Havermann e Georg Lukacs (no discurso na Academia Política do PC da Hungria, em 28.06.1956) defendem o diálogo. No começo da década de 60 há semanas de diálogo, tendo Garaudy (com textos magníficos e correspondente de Dom Hélder Câmara) como principal fautor do mesmo.

Além deste, participaram J.P. Vigier, J.P. Sartre e J. Hyppolite.

Em 1964, Togliatti, no “Memorial de Yalta”, escreveu: “a velha propaganda de ateísmo não serve para nada” e pediu aos comunistas para “não contrapor suas convicções de forma abstrata às tendências e correntes diferentes, e sim entrar no diálogo com estas correntes”.

Togliatti elogiou muito os documentos do Concílio Vaticano II e João XXIII.

O Concílio Vaticano II acatou o espírito de João XXIII e ampliou o diálogo.

Em 1964, Ernst Bloch e Adam Schaff se destacaram, no lado marxista, na defesa do diálogo.

Houve inclusive congressos internacionais de diálogo entre cristãos e marxistas, em Salzburgo (1965), em Herrenchiemsee (1966), em Marienbad (1967) e em Praga (1967), na então Tchecolováquia. Somente a URSS, a Albânia de Hoxha e a RDA (Alemanha Oriental) não participaram.

A Ação Católica Operária (ACO), na França, no congresso anual de maio de 1971, deu um bom exemplo de saudável laicidade (tolerância, ecumenismo), ao aceitar trabalhadores marxistas na organização.