O ideal concreto histórico, a “Fórmula-síntese” de Alceu, Barbosa Lima, Benayon, Dowbor e outros

No fundo, o IDEAL CATÓLICO, que é o mesmo do ideal hebreu e do ideal clássico, é um ideal de autonomia e libertação da pessoa, do trabalho.

O ideal da Paidéia é o ideal da Antiguidade e de todos os povos, inclusive da China, da Índia, de nossos indígenas (bororos de GO e MT e outros), dos africanos, dos esquimós (“inuits”, na Groelândia) e de todos os povos.

Trata-se do ideal natural de uma estrutura-organização econômica e regime social e político baseado no trabalho não-reificado, não servil, de libertação do trabalho, de controle PESSOAL E ATIVO do trabalhador sobre o processo produtivo junto com a subordinação do processo produtivo ao domínio eminente da sociedade, ao Estado, ao planejamento público. Economia mista.

Em termos atual, este ideal ganha a forma de uma economia mista, com ampla difusão da pequena propriedade rural e urbana, tal como do trabalho cooperativado, de estatais com co-gestão dos trabalhadores e de planejamento público participativo.

Em termos políticos, este ideal ganhou o nome de Democracia Participativa, sendo adotado em vários documentos da Igreja. Trata-se do ideal de uma democracia real, onde o povo seja o dono do próprio destino, assuma o controle da natureza e dos processos produtivos, tal como participe das decisões relevantes sobre a própria vida. A Igreja exige um regime social, político, econômico e cultural de vida plena, digna e abundante, para todos.

A democracia participativa exige difusão de rendas e bens para todos, pequena propriedade familiar para todos, renda básica e moradia para todos, cooperativas e também um amplo setor da economia estatal, com planejamento público participativo (cf. Pio XI e Paulo VI).

Como explicou Pio XI, na “Quadragesimo Anno” (n. 114), “com razão se pretende que se reservem ao poder público certos gêneros de bens que atribuem poder excessivo, que não pode ser deixado em mãos de particulares, sem perigo para o Estado”.

João XXIII, na “Mater et Magistra” (n. 116), foi mais sintético: “o Estado e as demais instituições públicas” podem “possuir legitimamente bens de produção”. O Papa e todos os bispos católicos, na “Gaudium et Spes” (n. 71), sintetizaram este ponto, explicando que a difusão da pequena propriedade familiar é compatível e complementar com “diversas formas de propriedade pública”.

A exigência de trabalho não-reificado, do primado do trabalho no processo produtivo (cf. Alceu e João Paulo II), foi elogiada na Bíblia (por Moisés, especialmente no “Deuteronômio”, tal como nos livros proféticos e sapienciais).

O mesmo ensinamento está também nos maiores autores gregos, como Hesíodo, Homero, Heródoto, Xenofonte (“Economia”), Platão (no livro “As leis”), Aristóteles (na “Política”, nas obras éticas e na “Economia”), nos textos dos estóicos, em Cícero, Tito Lívio, Virgílio (70-19 a.C.), Columela, Plínio o Antigo, Plutarco e outros luminares.

A concepção política e econômica humanista foi recepcionada pelo cristianismo e pelos Santos Padres. Autores como Virgílio praticamente prepararam o terreno para a semente do cristianismo, através de obras magistrais como “Eneida”, “Geórgicas” e “Bucólicas”, sempre apreciadas pelos Papas e Santos Padres.

Nas “Bucólicas”, Virgílio escreveu palavras que foram usadas pelos cristãos, como, por exemplo:

“Vejo surgir uma larga série de séculos que renascem. Retorna à terra a virgem Astrea e, com ela, o reinado de Saturno [que os hebreus identificam com o reino de Deus]. Baixa dos céus uma nova raça de heróis. Sorri o Menino que vem, porque a sua chegada dará fim à idade do ferro e pelo mundo se espalhará a idade de ouro” [o ideal de um novo Éden, o mesmo ideal bíblico, presente nos textos éticos sobre a parusia e a renovação gradual do mundo].

Há textos na mesma linha de Sêneca Pai, o pai de Sêneca, de Sêneca, tal como de Quinto Horácio (65-8 a.C.) e outros. Horácio, nas “Epístolas” e nas “Odes”, adota um estoicismo humanista, próximo de Sêneca. A concepção jurídica dos grandes juristas romanos era estóica e atuou também como preparação humana para o cristianismo.

O elogio da Paidéia e do cristianismo foi bem redigido por autores como Hegel, Werner Jaeger, Eleutherio Elorduy (“O estoicismo”, “A filosofia social dos estóicos” e outras grandes e magníficas obras), Max Pohlenz (“Die Stoa” e “Paulo e a Stoa”), Bonhoeffer (“Epíteto e o Novo Testamento”), G. Hansen, Ernest Barker (“Teoria política grega”), Simone Weil e outros.

Toda a tradição católica parte da síntese entre Paidéia e a Revelação Hebraica, oral e escrita, da síntese da cultura hebraica com o melhor da cultura da Paidéia.

O padre Eleuthério Elorduy, no livro “El estoicismo” (Madrid, Ed. Gredos, 1972, Tomo II, p. 319), resume bem o primado da sabedoria, das idéias do bem comum, da subjetividade do trabalhador e da pessoa no processo histórico e social, com as seguintes palavras:

A sabedoria divina, que é o mesmo que o Summum Bonum [o Bem Supremo, a fonte de todo bem, do bem geral, comum] ou o Amor de Deus, é energia radiante e universal comunicadora de perfeição na ordem da atividade individual das pessoas e no coletivo dos corpos sociais. Esta é a visão compartilhada por Sêneca, testemunha deste fenômeno nas grandes domus da Roma de 63-64, como de Agostinho, em sua doutrina universal da “Cidade de Deus”. A visão metafísica do Bem supremo e da Sabedoria divina, Causa Primeira e Agente universal, desdobra-se no mundo da realidade pela via da participação – por aderência a Deus em Agostinho e por irradição da “Ratio” [Razão, Logos] em Sêneca – fundamentando a base ontológica de toda perfeição física, moral, social e política, tanto na ordem das naturezas específicas recebidas na criação, como na elevação sobrenatural que em Sua Providência [a “tensão” da Providência] pode Deus estabelecer…(…).

“A semelhança do cristianismo com o estoicismo neste ponto implica uma aproximação da filosofia estóica com a teologia Patrística, estudada com grande erudição por Stelzenberger, Spanneut e Pohlenz”.

Os hebreus e os cristãos sempre estão abertos às idéias verdadeiras, que formam a “Sabedoria”, como ensinam os livros sapienciais da Bíblia. Estas idéias são salvíficas, são geradoras do bem comum.

Os cristãos e os hebreus, tal como os grandes filósofos da antiguidade (inclusive Confúcio, Buda e outros) sabem que a verdade (as idéias verdadeiras e boas) é a fonte normal do bem comum, é salvífica, liberta (“conhecereis a verdade e esta vos libertará”, cf. Jesus).

Os hebreus deram um grande exemplo de abertura e ecumenismo na tradução da “Septuaginta”, lá por 285 a.C., realizando, na tracas com as idéias da Paidéia. A “Septuaginta” tem importância essencial, pois foi o texto mais usado pelos Apóstolos e talvez até por Jesus Cristo. A difusão do cristianismo ocorreu pela mediação da “Septuaginta”, já numa forma de síntese entre idéias hebraicas e da Paidéia.

A própria Bíblia contém a incorporação de idéias da Paidéia mais antiga, especialmente do melhor da cultura mesopotâmica (de Ur, Harã e outras cidades), tal como do Egito e da cultura de Canaã. A Bíblia, inclusive o Antigo Testamento, foi formada com base no material das culturas da Antiguidade, com a ajuda da inspiração.

A inspiração incide sobre a natureza, sobre pessoas concretas, mergulhadas em seus habitats culturais, em seus húmus culturais. O mesmo ocorre com a graça, com a profecia, pois o “sobrenatural” é a ação divina sobre a natureza, sem destruir a criação do próprio Deus, e sim a elevando, aperfeiçoando-a, por dentro, por inculturação.