Entrevista ótima de Luiz Gonzaga Belluzzo, citando Francisco I e Karl Polanyi

Tirei do site da Unisinos, onde tive a honra de estudar em 1984, em São Leopoldo RS, onde eu era pré-noviço jesuíta. Belluzzo fala do texto Evangelii Gaudium, a Alegria do Evangelho, de Francisco I:

“O papa diz claramente que não irá fazer um debate teórico sobre economia. Ele vai dizer o que pensa de certas características da vida contemporânea, as quais não parecem compatíveis com a vida cristã”, assinala o economista. Na Exortação Evangelii, o papa Francisco “faz uma análise contemporânea” da situação econômica e ressalta que o “capitalismo deixado à sua própria sorte, sem freios, é um sistema que se move só em função dos seus próprios propósitos”, avalia o economista Luiz Gonzaga Belluzzo na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.

Para ele, o papa não tem a pretensão de discutir as teorias econômicas, mas, ao analisar a situação da economia global, “toma um ponto de vista em que a questão central é a realização de um projeto que vá em direção da comunidade cristã: o amor ao próximo, a igualdade. (…) Está muito claro no texto do papa que a questão central a ser considerada é a dignidade da pessoa humana que foi feita à imagem e semelhança de Deus. São esses princípios que o papa está repetindo ao longo de todo o documento da Evangelii Gaudium”, frisa.

E acrescenta: “O que o papa fala é que, a despeito da capacidade de produção e da oferta de bens, aumentou a desigualdade e se impôs ao comportamento das pessoas uma tremenda atração, ou o que ele chama de fetichismo do dinheiro, com uma perda de importância dos valores de solidariedade, de amor ao outro”.

Na interpretação do economista, dentre os pensadores econômicos que mais se assemelham à antropologia cristã, destaca-se Karl Polanyi, que “toma o ponto de vista católico e cristão para fazer sua análise econômica, por exemplo, quando fala do mundo satânico, ou dos mandos e danos provocados pela tentativa de fazer com que a sociedade se mova de acordo com os princípios do mercado autorregulado. Então, ele fala da terra, do trabalho e do dinheiro, porque diz que estes devem servir de meio para o enriquecimento humano, de submissão ao mecanismo diabólico que estraçalha a vida do ser humano concreto”.

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde leciona atualmente. Vejamos a entrevista:

IHU On-Line – Para o senhor, qual é o entendimento do papa Francisco acerca da economia, segundo as declarações da Primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium? Quais são os principais aspectos apontados pelo Papa em relação à economia?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O papa Francisco aponta algumas questões importantes sobre a economia contemporânea, as quais estão correlacionadas e já fazem parte, em geral, do repertório que muitos economistas críticos manejam para fazer uma avaliação do comportamento do capitalismo nos últimos anos. O que o papa fala é que, a despeito da capacidade de produção e da oferta de bens, aumentou a desigualdade e se impôs ao comportamento das pessoas uma tremenda atração, ou o que ele chama de fetichismo do dinheiro, com uma perda de importância dos valores de solidariedade, de amor ao outro. Esses valores foram sendo dissolvidos nesse espírito competitivo de valorização excessiva do dinheiro, do consumismo do “Sagrado”. Então, ele faz uma crítica muito contemporânea e ajustada à Doutrina Social da Igreja.

Li na Veja que essa postura vem desde a Rerum Novarum, mas, ao contrário, esses valores básicos estão no espírito do cristianismo primitivo. É claro que estavam ajustados ao momento histórico em que o cristianismo primitivo surgiu, mas é preciso entender que eles têm a ver com as origens do cristianismo, que é uma sublevação contra algumas das realidades da vida das sociedades antigas: a crueldade, a sujeição da mulher, o desamor pelo outro, uma sociedade envolvida com a violência apesar da filosofia grega.

Por isso citei o Satyricon, do Fellini, em meu artigo. Quando você assiste ao filme ou lê o livro, vê que aquele realmente é um momento de angústia, apesar da riqueza acumulada pelo Império a partir do saque e da captação dos recursos dos outros através do poder que o Império tinha: a sociedade estava numa situação de desesperança quando surgiu o cristianismo. A encarnação exprime isso: por que Deus se fez homem? Ele se fez homem inclusive para partilhar das angústias dos humanos, para mostrar que, na verdade, ele se juntava àquele vale de lágrimas. Mas ele trazia a esperança da ressurreição e da conquista da salvação, mas a salvação não é uma dádiva; a salvação é uma conquista do homem.

É por isso que digo que o homem passou a ter uma dimensão histórica, encarnada na vida humana concreta. Isso tem muito a ver com o cristianismo. Ao contrário do judaísmo, o cristianismo desfaz essa abstração da eternidade, transforma-a em um contínuo da vida, ou seja, a eternidade é um prolongamento da vida. Isso tudo está na obra A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, que, ao falar do povo de Deus, diz o seguinte: “Os monges estão obrigados a ceder aquilo que eles têm àqueles que não têm”. Então, essa visão da solidariedade, da doação, do amor ao próximo, está exposta de uma maneira contemporânea nesse documento que o papa produziu.

IHU On-Line – Na sua interpretação o papa faz uma crítica ao capitalismo em si ou à exacerbação do dinheiro e da idolatria do dinheiro? É possível analisar essas posições de modo distinto?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Uma coisa está interligada à outra. O papa faz uma análise contemporânea. Então, está dizendo que o capitalismo deixado à sua própria sorte, sem os freios — ele usa a expressão “autorreferencial” — é um sistema que se move só em função dos seus próprios propósitos. Então, quando ele fala do amor pelo dinheiro, está falando que essa é a forma, por excelência, de existência do capitalismo. Ou seja, o capitalismo expurga todas as outras dimensões da vida humana, como outros já perceberam. Quer dizer, você não pode pensar na Fenomenologia do Espírito, de Hegel, quando ele fala da realização do espírito absoluto, sem pensar nessa transformação, nessa história do espírito. O papa reconstitui isso, sem que tenha feito nenhuma referência a Hegel, a Marx ou a Polanyi. Todos eles olharam o capitalismo desse ponto de vista: da sua capacidade, ou da sua tendência a absorver todas as dimensões da vida. Mas isso não é possível nesse quadro de capitalismo; o homem não vai realizar o seu projeto de liberdade, de igualdade, de fraternidade, sobretudo, dentro desse quadro.

IHU On-Line – Como interpreta as posições de que a teoria econômica do papa deve ser orientada mais por Polanyi e menos por Marx?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Não creio que o papa queira discutir as teorias econômicas, mas ele toma um ponto de vista em que a questão central é a realização de um projeto que vá em direção da comunidade cristã: o amor ao próximo, a igualdade, porque o cristianismo é a religião que introduziu essa questão de igualdade entre os homens, ou seja, de que todos são dignos do amor de Cristo. Está muito claro no texto do papa que a questão central a ser considerada é a dignidade da pessoa humana, que foi feita à imagem e semelhança de Deus. São esses princípios que o papa está repetindo ao longo de todo o documento da Evangelii Gaudium.

É claro que o cristianismo deixou um rastro que foi sendo seguido ao longo do tempo. Se você pensar em Hegel, na Fenomenologia do Espírito e na Filosofia da História, verá que as duas obras têm, de fundo, essa ideia do aperfeiçoamento, da realização, a ideia do espírito absoluto. Em Marx isso também aparece. Não é que o papa tenha um ponto de vista marxista; é que Marx tomou pontos de vista que nascem dessa construção histórica que surge com o cristianismo.

Vi uma discussão na revista Veja e no The Economist de que o papa faz uma crítica ao capitalismo. Ele disse que não irá fazer isso, mas reafirmar os princípios que devem reger a vida cristã, dadas as condições em que os homens vivem e se desenvolvem no mundo contemporâneo. As pessoas ficam esperando uma inspiração do papa quando na verdade é o cristianismo, sobretudo na sua origem, que formou esses pontos de vista, essa visão de homem. O papa diz claramente que não irá fazer um debate teórico sobre economia. Ele vai dizer o que pensa de certas características da vida contemporânea, as quais não parecem compatíveis com a vida cristã.

IHU On-Line – Alguma das teorias econômicas se aproxima da visão antropológica cristã? Com quais teorias econômicas o discurso do papa se aproxima?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Esta antropologia econômica está presente em vários autores, em Marx inclusive, mas em Polanyi também. Neste último mais ainda, porque era um pensador católico, cuja inspiração era católica. Ele toma o ponto de vista católico e cristão para fazer sua análise econômica, por exemplo, quando fala do ‘moinho satânico’, ou dos mandos e danos provocados pela tentativa de fazer com que a sociedade se mova de acordo com os princípios do mercado autorregulado. Então, ele fala da terra, do trabalho e do dinheiro, porque diz que estes devem servir de meio para o enriquecimento humano, de submissão ao mecanismo diabólico que estraçalha a vida do ser humano concreto.

Na matéria da Veja, por exemplo, citam Max Weber, mas acredito que Polanyi está muito mais próximo do que o papa diz. Max, a despeito do ambiente cultural em que foi criado, diante do susto do surgimento da modernidade, viu aquele momento como uma oportunidade e ao mesmo tempo como a construção de uma das cadeias que prendem o homem a esses vícios terríveis do mercado autorregulado. Se analisarmos os pensadores quem têm mais afinidade com o pensamento da Igreja, sem dúvida alguma é Polanyi.

IHU On-Line – Vê uma mudança no posicionamento de Francisco em relação à Doutrina Social da Igreja? A visão econômica defendida pelo papa se aproxima e se distancia de documentos anteriores da Igreja?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Não. Esse pensamento vem desde a Rerum Novarum, passando depois por outras encíclicas como Mater et MagistraPacem in Terris, que foram formuladas por João XXIII, depois tiveram as propostas do Concílio Vaticano II, mas que foram sendo esvaziadas progressivamente pelos papas que sucederam João XXIII. O papa Francisco voltou às questões tratadas por João XXIII, porque notou um afastamento, dos próprios cristãos, dos princípios que devem reger a vida cristã. Ele fala inclusive do risco das religiões que são utilitaristas, que na verdade se pautam por uma espécie de “consumismo do Sagrado”, e isso repercute no modo de vida que as pessoas têm hoje, completamente absorvidas pelo afã de acumular bens materiais.

Por isso ele fala da alegria do Evangelho, que você pode ser muito mais realizado se tiver uma vida mais próxima daquilo que Cristo propôs.

IHU On-Line – Vislumbra no discurso do papa um desejo de superação do capitalismo, ou um controle maior na economia, ou, ainda, seu discurso transita em outro nível?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O discurso está posto no nível do Evangelho. Ele está dizendo que o cristão não poderá realizar o seu projeto nesta Terra. Diz isso porque a Igreja se preocupa com a salvação interna, mas se preocupa também com o bem-estar e a felicidade dos homens na Terra. Acho que nenhuma vez ele usou a palavra capitalismo, e nem precisa usar.

Eu fui seminarista dos jesuítas, e um amigo me perguntou como o Evangelho era lido. Respondi que no meu tempo era lido em latim. Por incrível que pareça, o primeiro texto que li sobre Marx foi La pensée de Karl Marx, do jesuíta Jean-Yves Calvez, escrito em 1956, se não me engano. É um livro que trata do marco desse ponto de vista que apontei aqui.

IHU On-Line – Como você vê essa crítica da Igreja ao marxismo, especialmente de Bento XVI, mais recentemente?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Bento XVI é um intelectual, e quando ele fala do marxismo, imagino que esteja falando do socialismo real, do materialismo, etc. Agora, o problema é que o materialismo de Marx diz o seguinte: “É preciso que se tomem os objetos tais como eles existem”. Ele está falando de uma ontologia do econômico, uma ontologia do ser social, como escrevi no meu último livro. Ele estava mostrando que essa ontologia era alienante, como o papa usa hoje a palavra alienante num dos trechos do seu texto, porque ela desviava o homem da realização da sua subjetividade livre.

Acho interessante o debate entre Jürgen Habermas e Ratzinger, mas Bento XVI, ao contrário de Bergoglio, não conseguiu se livrar dessa visão parcial, que está maculada historicamente pela experiência do socialismo, que foi trágica, porque o socialismo real tentou realizar exatamente aquilo que o capitalismo vem realizando. Ele abandonou todos os princípios ou os projetos que Marx originalmente concedeu ou imaginou.

IHU On-Line – Em que medida Marx se enquadra na tradição judaica cristã?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Na medida em que ele está mergulhado naquela preocupação com os caminhos da liberdade do homem e da sua realização integral. Ele diz que o homem vai se realizar na história, e isso está na base do cristianismo. O marxismo cai nessa tradição, aliás, não há como o destrinchar do horizonte do pensamento da filosofia.

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