A luta pela superação do regime assalariado é uma luta tradicional da Igreja

O padre jesuíta Theodor Amstadt, no início do século XIX, foi um dos precursores do cooperativismo (na forma atual), no Brasil.

É importante destacar a expressão “na forma atual”, pois as aldeias indígenas, a República dos Guaranis, os Quilombos e práticas como o mutirão mostram que formas cooperativistas de produção são comuns na história do Brasil.

Muitíssimos sacerdotes, como o padre Roque Lauchner e Odelmo Schneider seguiram as pegadas do padre Theodor Amstadt. Outros precursores do cooperativismo são: Joaquim Inácio Tosta, Carlos Alberto de Menezes, Fábio Luz, Saturnino Brito, Sarandy Lobo, Luiz Amaral e outros.

Joaquim Inácio Tosta, um grande católico social, foi o responsável pela primeira lei de cooperativismo no Brasil. Sua inspiração era explicitamente católica. Lutou por leis trabalhistas em defesa dos operários, no início do século XX. Conseguiu que o Congresso aprovasse a primeira lei sobre sindicatos, no Brasil. Quase todos estes precursores eram católicos ou cristãos. Outro grande católico, Luiz Amaral, deixou uma boa obra sobre a história da agricultura e bons textos cooperativistas.

Jessie Jane Vieira de Souza, no livro “Círculos operários” (Editora Uerj Faperj, 2002, p. 189), traz um bom texto de Joaquim Inácio Tosta:

A associação, por sua vez, era ligada à Confederação Nacional dos Operários Católicos, entidade criada pela hierarquia da Igreja na década de 1920 e sediada na capi­tal federal (…)

“Os objetivos da entidade eram os de instruir os filhos dos operários, propagar entre eles os princípios da doutrina cristã, incentivar o cooperativismo, esti­mular e auxiliar a aquisição da casa própria e desenvolver uma política de aluguéis baratos, propostas que também já estavam presentes em 1908 nas palavras do deputado baiano Joaquim Ignácio Tosta, presidente do II Congresso Católico Brasileiro:

Tal é, em verdade, o pensamento do clero brasileiro. Se ele quer ir ao encontro do povo (…) é para valer, pela pureza da doutrina cristã, para cuidar dos interesses temporais do ope­rário e do agricultor em instituições cristãs, animar a formação de sindicatos profissionais e cooperativas de crédito, de con­sumo e de produção, que tornem a vida mais barata e mais confortável ao operário e ao agricultor; é para aconselhar aos que trabalham no descanso dominical e assegurar a sua obser­vância por meio de associações contra os abusos dos especu­ladores do trabalho; e para, à sombra da liberdade de ensino, fundar escolas onde o filho do povo aprenda a ler e escrever, amar a pátria e a Deus sobre todas as coisas. (Joaquim Ignácio Tosta, apud Lustosa, 1986, p. 10)”.

Em 1908 (e mesmo antes), militantes da Igreja defendiam a formação de sindicatos e cooperativas. A Confederação Nacional dos Operários Católicos, nos anos 20 do século XX, incentivava o cooperativismo e o sindicalismo, pontos que os anarquistas e sindicalistas também defendiam. Uma parte da hostilidade era pelo fato das duas doutrinas brigarem por seguidores nos mesmos círculos, na mesma órbita.

José Saturnino Britto, um dos maiores anarquistas do Brasil, no livro “Evolução do cooperativismo”(Editora Casa Mandarino, Rio de Janeiro, 1936, pp. 8-9 e 152-154), reconheceu a importância de Buchez e do Dr. King (dois homens extremamente religiosos), para o cooperativismo:

As leis, ao invés de corrigir a deturpação do cooperativismo, em muitos lugares a provocaram pas­sivamente. Porventura, o socialismo alerta de Buchez serviu de exem­plo na França, onde ele criou o “Fundo indivisível” da Associa­ção Obreira, aliás análogo ao capital coletivo, anteriormente criado pelo Dr. King.

“Dizia o predestinado Buchez: “a sagrada arca que é preciso sempre aumentar e nunca diminuir e sem a qual o princípio salvador da Associação não teria a sua virtude”, fundo destinado a permitir á Associação “tal extensão que ela acabou por congraçar todos os operários exercendo a mesma profissão numa mesma localidade. Essas Associações, se o governo lhes fosse favorável, teriam o direito de posse, poderiam reger as condições do tra­balho, organizar as instituições de previdência e assistência. Enfim, os operários manuais, ao invés de serem salariados, sem ter o futuro garantido, passariam a proprietários, entre si, dos instrumentos do trabalho e formariam instituições destinadas a garantir sua velhice ou a os ajudar nas dificuldades da vida”. Isto na época em que o maquinário substituiu o trabalho manual, citação que fizemos em “Dialogo com o Povo”, publicado em 1927.

“Mas todos aqueles esforços, possivelmente desprezados pela demagogia, degeneraram em “clubs” e sindicatos políticos, ligas de resistência, para os operários, e para os agrícolas em sindicatos comerciais, perdendo-se a noção do verdadeiro sistema cooperativista, que ficou sempre por se definir. (pp. 8-9) (…)

“Filão histórico do cooperativismo

“Os princípios que regem a cooperação representam a inteireza absoluta na forma de se economizar, abolir intermediários, criar e aplicar o capital coletivo, organizar o trabalho e distribuir a produção deste, financiar o parque das atividades profissionais.

Antes do Dr. King, Owen, Howarth, Fourier, decerto já exis­tia o regime das guildas, ansas, mirs e outras formas remotas de combinar uma finalidade comum, quer para reunir um pecúlio destinado a socorros mútuos, quer para garantir os meios de trabalho, o comércio dos produtos deste. Isto nas cidades, como nos campos.

“Por ventura o que respeitava ao regimen comunista da Idade Média, reunia na sua simplicidade toda a família das populações, quer organizada em corporações urbanas, quer na vida rural, em torno dos castelos feudais ou nos latifúndios da “não morta”.

“Era a forma espontânea, quase paradisíaca, debaixo de todos os céus enquanto o Estado se não imiscuiu, para garantir magna­tas surgidos com o maquinário, arrancando os instrumentos medievais do trabalho corporativo, desmembrado pelos monopólios, o liberalismo que permitiu que os niebelungens do capitalismo se apoderassem dos bancos, das fabricas, das terras e dos mares. Hoje até dos ares. Traída a plebe pelos girondinos e jacobinos, as idéias geniais de socialização das terras e industrias, dos armazéns municipais e de consignação dos produtos de primeira necessidade, nebulosa cooperativista, só mais tarde, Owen e Fourier desenvol­veram.

“Foi assim pressentido o gênio da cooperação, que é tão gênio como o da natureza, cujo método, que até hoje não variou, pois seria tão difícil como substituir a água, o fogo, a plebe de 44, em Rochdale, metodizou, com não menor genialidade do que a plebe de Paris e Lyon.

“Mas não bastava. A luta econômica, pacifica da cooperação não resolvia senão por meio de conta-gotas a sede de justiça. A demagogia tomou conta do campo de ação e fez das cooperativas seus instrumentos. Resultado, os princípios cooperacionistas foram deturpados em favor da ação das barricadas e das greves, até que se observou a destruição das cooperativas proletárias, salvo as que se aburguesaram, dando um mau exemplo, do qual surgiu propriamente a “cooperação livre”, que tanto serviu a gregos, como a troianos, como tudo que tem tabuleta, se expõe à deturpação, passa a instrumento dos mais velhacos.

“Entretanto, não faltaram os Vergnanini, os Rabbeno, os Vigano, os Mazzini, os Nast, os Vidari, para proclamar bem alto os princípios puríssimos da cooperação, que concretizaram o sociais mo anti-político, verdade e, que ainda bem poucos o percebem claramente.

“Não se confunde a poeira levantada a prol da realidade, com a neblina que vela o berço da natureza nas madrugadas das inicia­tivas humanas.

“A jornada cooperacionista continua. Não a da cooperação à beça, que tanto agrada aos especuladores que se aproveitam das idéias as mais puras para emporcalha-las.

“A jorrada que não cessa e a dos princípios sadios da coope­ração, que não prescinde da quantidade, embora com a cooperação predomine a qualidade afim de se padronizar a quantidade. Sua moral é esta. Esta e sua lei.

Nós aqui, com a promulgação da legislação em vigor, que gra­vitou em torno do postulado sindical-cooperativista, subsequente retificação sistemática, do Mestre Sarandy Raposo, criou-se o “habitat” legal para a concretização dos nobres princípios da cooperação, na coordenação das suas funções cíclicas, que carecem de ser especializadas, adquirindo para esse fim personalidades jurí­dicas distintas e justapostas.

“Não menoscabemos tal retificação, intrigando-a com o que surgiu espontaneamente do filão histórico cooperacionista, na luta pela realização coordenada dos princípios, pois tudo decorre da própria evolução cooperacionista e merece o melhor conceito. O que tem caráter cíclico, forçosamente tem que partir de um foco moral”. (pp. 152-154).

José Saturnino Brito escreveu belíssimas obras. Por exemplo: “a cooperação é um Estado”, “Socialismo pátrio”, “Da volúpia ao ideal”, “A escravidão dos pequenos lavradores”, “Socialismo progressivo” e “Amor, vence!”.

Lima Barreto lia e elogiava os textos de Saturnino Brito. Lima Barreto foi um dos maiores escritores brasileiros, inspirando-se no cristianismo. Elogiava São Paulo pelo amor aos pobres, criticando Nietzsche. Nietzsche odiava o cristianismo por ser uma religião que criticava os ricos e defendia os pobres, os doentes, os humilhados, os fracos etc. Jackson de Figueiredo, que converteu Alceu, foi elogiado por Lima Barreto. Por exemplo, em 23.04.1921, Lima Barreto, numa carta, reconheceu os méritos de Perilo Gomes e da Igreja.

No Brasil, houve correntes anarquistas ligadas ao cristianismo. Um exemplo: Afonso Schmidt escreveu o livro “Tesouro de Cananéia”, onde conta a história de São Nicolau, retirada do “Flos Sanctorum”.