Schumpeter e o elogio da economia mista

A doutrina clássica da democracia é jusnaturalista, tendo como núcleo principal o bem comum, seguindo Schumpeter

Nos EUA, a tradição democrática é quase toda religiosa, com fundamentos cristãos, hebraicos, gregos, romanos e também indígenas (a tradição dos iroqueses e de outros povos indígenas).

Os melhores textos democráticos dos EUA contrariam o capitalismo e o imperialismo, como demonstraram homens como Michael Moore, Harrington ou Chomski.

Os textos de Benjamin Franklin, Washington (Leão XIII, no capítulo 4 da encíclica “Longínqua oceani”, elogia Washington como “grande” e também diz que a “constituição” dos EUA é “boa”), Thomas Jefferson, Thomas Paine, Henry David Thoreau (vide “Desobediência civil”), Mark Twain, Emerson, Lincoln, Walt Whitman (1819-1892), William James e centenas de outros escritores não deixam dúvidas sobre o fato da democracia exigir a superação do capitalismo.

A tradição democrática é distinta do liberalismo econômico, como foi demonstrado por Franklin Roosevelt, Henry Wallace (ver “O século do homem do povo”, Rio, Ed. José Olympio, 1944), Dewey, Bertrand Russel, pelos socialistas americanos etc.

Há o mesmo ensinamento nos textos de Samuel Silva Gotay, no livro “O pensamento cristão revolucionário na América Latina e no Caribe” (São Paulo, Ed. Paulinas, 1985). No fundo, esta é a “tradição ética anticapitalista da Igreja”, como foi apontada por Michael Lowy e Christopher Hill.

Joseph A. Schumpeter (1883-1950) foi Ministro das Finanças da Áustria e depois professor em Harvard de 1932 a 1950. Em seu livro “Capitalismo, socialismo e democracia” (Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976, pp. 313, 331-335), expôs a “teoria clássica” e aristotélica da democracia, com fundamento no bem comum, no bem de todos, com fundamentação jusnaturalista, nas idéias consensuais e comuns do povo. Vejamos parte de seu texto límpido:

“A doutrina clássica da democracia

1. O bem comum e a vontade do povo.

A filosofia da democracia do século XVIII pode ser enunciada na seguinte definição: o método democrático é o arranjo institucional para se chegar a decisões políticas que realiza o bem comum fazendo o próprio povo decidir as questões através da eleição de indivíduos que devem reunir-se para realizar a vontade desse povo. Vamos desenvolver as implicações disso.

Afirma-se, então, que existe o Bem Comum, o farol óbvio da política, que é sempre simples de definir e que qualquer pessoa normal pode ver através da argumentação racional.

Não há, portanto, qualquer desculpa para não vê-lo, e na verdade qualquer explicação para a presença de pessoas que não o vêem, exceto a ignorância – que pode ser removida -, a estupidez e o interesse anti-social. Além disso, esse bem comum implica respostas definidas a todas as perguntas, de modo que todo fato social e toda medida tomada ou a ser tomada podem, inequivocamente, ser classificadas como “boas” ou “ruins”. Todas as pessoas têm, portanto, de concordar, ao menos em princípio, em que há também um Bem Comum do povo (= vontade de todos os indivíduos razoáveis), exatamente coincidente com o bem, ou interesse, ou bem-estar, ou felicidade comuns.

A única coisa, excetuando-se a estupidez ou os interesses sinistros, que possivelmente pode trazer discordância e responder pela presença de uma oposição é uma diferença de opinião quanto à velocidade em que o objetivo, ele mesmo comum a quase todos, deve ser alcançado. Assim, todos os membros da comunidade, conscientes de tal objetivo, conhecendo seu próprio pensamento, discernindo o que é bom do que é ruim, tomam parte, ativa e responsavelmente, na ampliação do primeiro e na luta contra o segundo, e todos os membros assumem juntos o controle dos negócios públicos”.

Schumpeter deixou claro que a “teoria clássica da democracia” é baseada na síntese do jusnaturalismo hebraico e da Paidéia (especialmente, o grego-romano), com base na idéia de “bem comum” e nas luzes da razão. Estas idéias jusnaturalistas eram sintetizadas no provérbio: “a voz do povo é a voz de Deus”. A conclusão de Schumpeter é correta e atual:

“Razões para a sobrevivência da doutrina clássica

Transposta assim às categorias da religião, essa doutrina – e, em conseqüência, o tipo de fé democrática nela baseada – modifica sua própria natureza. Não é mais preciso qualquer escrúpulo lógico sobre o Bem Comum e sobre os Valores Supremos. Tudo nos é estabelecido pelo plano do Criador, cujo propósito a tudo define e sanciona. De repente, o que antes parecia indefinido e sem motivação torna-se claramente definido e convincente. A voz do povo é a voz de Deus, por exemplo. (…)

A cristandade abriga um forte elemento igualitário. O Redentor morreu por todos; Ele não diferenciou entre indivíduos de diferentes status sociais. Ao fazê-lo, Ele deu testemunho do valor intrínseco da alma individual, um valor que não admite gradações. Não é isso uma sanção – e, parece-me, a única sanção possível – de que “todos devem contar como um e ninguém deve contar mais que um” – sanção que despeja significados supermundanos nos artigos da fé democrática para a qual não é fácil achar qualquer outra? Sem dúvida alguma, essa interpretação não cobre todo o terreno. Entretanto, até onde ela vai, parece explicar muitas coisas que de outra forma seriam inexplicáveis e até mesmo sem significado”.

Schumpeter foi presidente da Ordem dos Economistas, no EUA, por vários anos. Deixou boas obras como a “História da análise econômica” (1954, inacabada e póstuma) e admitiu, com toda a honestidade, que as economias capitalistas movem-se para uma forma de socialismo, com economia mista e controle estatal.

Conclusão: os textos de Schumpeter também abonam a tese deste blog: que a “teoria tradicional” da democracia desenvolveu-se com base no jusnaturalismo hebraico-cristão e da Paidéia.

No caso dos EUA, também como base no utilitarismo cristão (especialmente o escocês), por sua vez baseado no iluminismo cristão (inglês, irlandês e também escocês). Um iluminismo com fundamentação jusnaturalista e teísta. Afinal, o ideal do utilitarismo é o ideal do bem comum, como demonstrou o maior dos utilitaristas, que foi Stuart Mill, um homem que também combinava democracia, defesa da mulher e da afetividade, tal como socialismo democrático, a economia mista e a religião, em seus textos.