Foram alguns católicos, como Thierry, que descobriram o papel das classes sociais, que Marx apenas refinou

O movimento histórico da democracia emergindo na história foi descrito parcialmente nos livros de Thierry, de Guizot e de outros historiadores românticos.

A concepção da luta dos camponeses, artesãos e pequenos burgueses contra a nobreza, movimento democrático, foi a base explicativa dos conflitos medievais e mesmo da Revolução Francesa. O principal historiador foi o católico Jacques Nicolas Augustin Thierry (1795-1856).

Therry foi um historiador francês católico.

O católico Thierry foi considerado, por Marx e Engels (cf. consta no livro “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”), como um dos principais descobridores do papel das classes sociais na história. Este grande historiador católico soube descrever parcialmente o movimento histórico de democratização universal, referido mais tarde por Leão XIII, Antoine, Maritain e Alceu Amoroso Lima.

No mesmo sentido, o grande padre Congar escreveu, nos “Jalons”:

A influência das idéias que alimentaram o movimento das comunas foi sentido na Igreja no século XIII, particularmente nas constituições dos dominicanos, imitadas em seguida por outras ordens; conjugada com a influência das idéias políticas da Escolástica sobre a natureza e a origem do poder, ela se exerceu sobre a constituição inglesa e, mais remotamente, até sobre a americana. As democracias nem sempre conhecem a sua verdadeira ascendência” [as fontes, ascendentes, origens católicas…].

No livro “Cartas sobre a história da França” (1827), o católico Thierry elogiou o movimento das comunas, na Idade Média, especialmente a partir do século XI, como o ressurgimento das antigas tradições gaulesas de liberdade. O feudalismo, para Thierry, foi trazido pelos francos. Os nobres latifundiários seriam os descendentes das famílias francas, invasoras e imperialistas. A mesma explicação foi aplicada à invasão dos normandos, na Inglaterra. Os “nobres” eram oligarcas, que queriam a escravização do povo, concepção que também está presente nos melhores textos de Sismondi. E, daí, para Marx, que as consolidou e refinou. 

O núcleo central, a alma, da concepção histórica de Thierry é a superação do feudalismo (da oligarquia) com o ressurgimento da democracia, na França. Em Portugal, Alexandre Herculano descreveu a história de seu país, seguindo os passos de Thierry. Os textos de Herculano eram católicos. O atrito de Herculano com parte do clero teve mais causas passionais do que diferenças de conteúdo. Parte do clero era mesmo reacionário e o grande Herculano era bem intratável e ainda por cima recluso e fechado (terminou a vida na sua quinta, chamada “O vale dos Lobos”, tipo um lobo solitário, se bem que os lobos não são solitários, as matilhas são regidas por casais de lobos…).

Segundo Thierry, a França gaulesa (a antiga Gália, que combatia os romanos), que falava a língua gaulesa (que gerou, até hoje, o irlandês, o gaélico escocês, o manx, o gaulês e o bretão) teria sido democrática. O feudalismo seria algo externo, uma herança e imposição brutal dos francos. Os nobres, a nobreza, seria composta de descendentes dos francos, o principal povo germânico, que ao ocupar a França adotou a língua latina que já estava difundida, por conta das invasões romanas, desde Júlio César.

As famílias francas seriam o tronco da nobreza, dos latifundiários e não passariam de imperialistas (como se fossem as multinacionais, hoje, no Brasil), invasores e parasitas do povo comum, descendente dos gauleses.

Os gauleses de Asterix são os heróis de Thierry.

Engels também elogiava os gauleses e os celtas, dispersos no País de Gales, na Irlanda e outras regiões. O elogio tinha bom fundamento histórico e talvez também tenha sido influência da esposa irlandesa e mui católica de Engels, que o levou inclusive a redigir um manuscrito sobre a história da Irlanda.

Para Marx e Engels, Thierry expôs o “segredo de toda a luta política, neste país”, na França, pois redigiu a história da França com base no conflito entre a aristocracia latifundiária e o povo.

O povo francês seria o “bloco” (na terminologia de Gramsci) dos trabalhadores, artesãos, pequenos burgueses e camponeses. Nos melhores textos da teologia da libertação e da doutrina social da Igreja este mesmo bloco é apontado como a parte sadia e boa da economia, sendo a oligarquia (latifundiários, grandes capitalistas e grandes fortunas privadas…) a parte maligna, que deve ser erradicada, para erradicarmos a miséria.

Thierry é citado desde as primeiras cartas entre Marx e Engels (por exemplo, em 09.03.1847). Nos livros de François Mignet, Guizot, Mignet e em outros há a mesma linha historiográfica. Foram estes autores cristãos (quase todos católicos) que influenciaram Karl Marx na idéia da luta de classes como motor e explicação da história. No fundo, na parte boa da idéia, é a luta do povo por liberdade e justiça social, pelo bem comum. A origem da parte boa da teoria da luta de classes é católica.

Na carta a Engels, de 27.07.1854, Marx chama Thierry de “pai da luta de classes na historiografia francesa” e elogia o livro “Ensaio sobre a história da formação e dos progressos do terceiro estado”.

Thierry foi um dos expoentes do romantismo católico. Thierry defendia que a Idade Média era o berço das liberdades e do governo representativo. Os germes da democracia tinham sido abafados pelo absolutismo monárquico a partir dos séculos XVI e XVII, tendo o absolutismo atingido o auge no século XVIII. Então, ocorreu a crise da revolução francesa.

A crise, como ensinavam livros médicos ligados a Hipócrates, gera a saúde, pelo movimento pendular destacado por Alceu Amoroso Lima. Marx também lia com cuidado os textos de François Guizot, mas não o elogiava, pois este o expulsou da França, em 1844 e sempre sobra alguma amargura, especialmente quando gerada por uma injustiça. E Guizot teve muitas falhas mesmo, estando o velho Marx correto, em não gostar do sujeito

De fato, na Idade Média existiram governos representativos (ponto destacado por Chateaubriand, no livro “O gênio do cristianismo”), com elementos da democracia. Para demonstrar isso, basta considerar os governos das comunas.

O movimento das comunas foi sempre elogiado como movimento revolucionário, como está bem claro nos textos de Kropotkin, Bakunin, Reclus, Proudhon e de outros autores. A Igreja participou intensamente deste movimento anti-feudal, anti-oligárquico, contra a tirania.

A aclamação dos reis era considerada uma parte intrínseca e um pressuposto da cerimônia da coroação dos reis. Mesmo nas cerimônias de coroação existia o reconhecimento implícito da necessidade do consentimento da sociedade na escolha dos agentes públicos, da forma do Estado e na produção das leis. No próprio juramento de Dom Pedro I, no Brasil, há a fórmula “Eu, Pedro I, por graça de Deus e unânime aclamação dos povos”. Só depois do juramento (de “observar e fazer observar constitucionalmente as leis”) havia a coroação e a entrega do cetro.

O padre Michel Riquet, no livro “Os cristãos e o poder (Rio de Janeiro, Ed. Agir, 1950) transcreveu o conselho do rei São Luís a seu filho:

“Meu filho, peço-te que te faças amar pelo povo de teu reino; porque, em verdade, preferiria que um escocês viesse da Escócia e governasse o povo do reino bem e lealmente a ver-te governá-lo mal” [cf. Joinville, “Histoire de Saint Louis”, Ed. Wally, Paris, 1890, n° 21].

O amor (logo, o consentimento) do povo e o bom governo (com base no bem comum) é a base real da legitimidade do poder, é o que torna justo o poder. O que há de comum entre vários reis religiosos (São Luís, Santa Isabel, São Venceslau, Alfredo e outros) é o fato de ajudarem os pobres, buscarem erradicar (extinguir) a miséria física, econômica, moral e intelectual do povo. Este é o papel do Estado, que se torna bom ao se pautar pelo bem comum, pelas idéias da ética cristã e natural.

Conclusão: os textos de Thierry e da maior parte dos historiadores românticos e cristãos do século XIX descreveram o movimento histórico de democratização, em prol da soberania nacional e popular, que exige o fim das classes opressoras, das opressões sociais. Exige a instauração cada vez mais ampliada e profunda do bem comum.

Os melhores textos históricos de Marx também seguem esta linha histórica, identificada com o iluminismo e o romantismo. Trata-se, no fundo, de um movimento providencial e divino contra as opressões, fazendo parte do núcleo (do coração) do processo histórico.

Hegel (e Eduardo Gans) também adotou esta teoria histórica, com base teleológica (que Gramsci valorizava, diga-se de passagem), uma teoria que ressalta uma linha histórica e providencial no núcleo do processo histórico (os Santos Padres chamam esta ação de ação da Providência, do Amor).

Thierry e Hegel, tal como Saint-Simon, redigiram textos com boas bases cristãs, principalmente católicas, e estas bases estão presentes nas melhores idéias do marxismo. São alguns dos “elementos de verdade” presentes no marxismo, como ressaltou João Paulo II, a parte boa, do trigo, que devemos preservar inclusive porque tem origem cristã, hebraica e no melhor da Paidéia.