Ótimas lições do Papa Pio IX, sobre a razão prática do povo etc

Pio IX, numa alocução de 09.12.1854, ensinou que viver de acordo com a “lei natural” é viver de acordo com a razão (a consciência). Significa ser livre, pois a liberdade autêntica significa uma pessoa pautar a vida pela própria consciência.

Viver de acordo com a consciência é o núcleo da teologia moral e da teologia política.

Pio IX também recomendava a leitura dos textos de Santo Afonso de Ligório (declarado Doutor da Igreja em 1870, por Pio IX), o Padroeiro da teologia moral e um dos maiores Doutores da Igreja. Santo Afonso, na linha tomista e dos jesuítas, ensinou que a base da ética é viver de acordo com a consciência. O grande Marciano Vidal mostra como a ética pastoral e moral de Santo Afonso de Ligório é a melhor da Igreja, a mais humana, bem ligada aos jesuítas. 

Em 1855, Pio XI condenou o fideísmo de Bonnetty, adepto do tradicionalismo, já que os erros fideístas deste autor desprezavam a razão. Em 1.06.1855, Congregação do Índice propôs a Augustin Bonnetty (1798-1879) quatro proposições para serem subscritas: 1) não há contradição entre a fé e a razão; 2) a existência de Deus, a espiritualidade da alma e a liberdade humana podem ser demonstradas pela razão; 3) o uso da razão precede à fé e conduz a ela, com a ajuda da Revelação e da graça; e 4) o método escolástico não leva ao racionalismo e não é, portanto, responsável dos erros da filosofia moderna. Bonnetty concordou e subscreveu as quatro proposições do Vaticano. Bonnetty atacava a filosofia da Paidéia, desprezando-a.

O Vaticano deixou claro que a fé e a razão são harmônicas e que a Igreja tem apreço pela filosofia, especialmente pela Paidéia.

Em 15.06.1855, Pio IX destacou que há uma relação de ajuda “mútua” entre a voz da razão (da consciência, do povo) e a voz de Deus, na própria Revelação. Isso ocorre porque “a reta razão demonstra, protege e defende a verdade da fé e a fé livra a razão de todos os erros e maravilhosamente a ilustra, confirma e aperfeiçoa”. Em consequência, toda obediência (oitiva) à Deus é um “obséquio razoável” (cf. Rm 12,1), e nunca algo cego.

Em 1856, Pio IX renovou a mesma lição e também lembrou que pessoas de outras religiões podem ser salvar também, porque Deus deu a todas as pessoas a luz natural da razão e auxilia a todos com a luz da graça (implícito nesta afirmativa há o reconhecimento da legitimidade do movimento ecumênico). 

Pio IX lembrou que o “consenso” dos leigos, bispos e papas é a base da infalibilidade (cf. “Lumen Gentium” 12, do Vaticano II), pois é a Igreja que é infalível.

Pio IX teve o mérito de provar isso na prática, ao convocar o Concílio Vaticano I, após cerca de 307 anos após o término do Concílio de Trento (1545-1563).

O velho Pio IX, numa alocução consistorial, na Assembléia dos bispos do mundo, em 09.06.1862, também destacou que “o poder civil” ou “soberania temporal” foi planejado pela “divina Providência” como um meio para assegurar “a plenitude” da “liberdade”, “para guardar”, proteger o povo, para “prover ao maior lustre” (luzes, idéias práticas do bem), atendendo às “necessidades” e assegurando o “proveito” (a perfeição da natureza, o bem) das pessoas.

Nesta alocução consistorial, Pio IX explicou que “a ação de Deus sobre o mundo e as pessoas” ocorre principalmente pela ação das “leis morais” (das idéias verdadeiras), pela ação humana, em prol do bem comum. As “leis humanas” “recebem de Deus a força de obrigar”, tornam-se “obrigações morais”, quando se “conformam com o direito natural”, com as regras do “bem” (pessoal, familiar e social, nos vários círculos e níveis sociais, dos bairros aos Estados mais amplos).

Pio IX, em 25.05.1871, relacionou a “atribuição de legislar na ordem moral e religiosa” dos Papas e Bispos com a função de “intérprete do direito natural e divino” (presente na consciência da maior parte da sociedade, das pessoas boas), ou seja, dos dados da razão e da Revelação, que são os marcos e os limites da infalibilidade. Os dados da razão estão presentes em todos.

Pio IX defendeu o direito da Igreja de ter um território com soberania temporal com base em argumentos racionais. O principal era o consenso da maior parte das pessoas das nações católicas.

A maior parte dos dados da Revelação coincide com os dados da razão, a parte que não coincide é supra-racional, não sendo nunca irracional. Paulo VI, em 21.04.1974, explicou, ao comentar o tomismo, que a “Revelação” (principalmente a Bíblia) tem “seus recipientes racionais e supra-racionais”.

Pio IX também condenou, na “Quanta cura” (08.12.1864), o erro dos que ensinavam que o clero é “inimigo do progresso, da ciência, da civilização”. A tese correta é que o clero e o cristianismo são fontes primordiais do progresso social e ético, como soube demonstrar Jaime Balmes.

A ênfase na razão e no bem é simples e também foi bem explicada por Pio IX. Este papa, no breve “Eximiam tual”, ao arcebispo de Colônia, em 15.06.1857, ressaltava que a “alma” “racional” é a “imediata forma do corpo”. A expressão “alma racional” consta no “Concílo de Êfeso” (431 d.C.), onde foi ensinado que Cristo tem uma “alma racional” humana (uma “natureza humana”) unida à “natureza divina” (união hipostática, que também fundamenta o provérbio “a voz do povo é a voz de Deus”). A cidade de Éfeso foi a cidade onde Maria viveu até cerca de 42 d.C., por doze anos após a crucificação. Esta cidade é a base de operações de São Paulo e foi o principal centro da cristandade após a destruição de Jerusalém, em 70 d.C. Em Éfeso, a cidade onde ainda há a casa de Maria e de São João Evangelista (seu filho adotivo), houve a explicitação das principais idéias sobre Cristo, que compõem a cristologia. Os Bispos católicos do mundo todo fizeram ali vários Concílios gerais de importância essencial na formulação dos dogmas da Igreja.

A harmonia entre a razão e a fé (e o mesmo vale para a graça, a obediência etc) também foi destacada por Pio IX, em vários documentos. Por exemplo, na Carta “Tuas libenter” (21.12.1863), ao Arcebispo de Munique, sobre os erros de Dollinger.

Na “Tuas Libenter”, Pio IX destacou o poder do “consenso” como sinal (indício, prova indiciária) da verdade, ao frisar que “o Magistério Ordinário da Igreja” ensina “verdades” “consideradas assim “por consenso universal e constante”. O consenso sempre foi tido como sinal da verdade, até prova em contrário.

As regras consensuais são assim tidas em grande conta na Igreja e perante a consciência, pois o consenso é um poderoso indício da verdade e o meio mais simples de obter decisões favoráveis a todos (através da oitiva de todos, do diálogo e da formação de boas sínteses multilaterais, que abarquem todos os interesses legítimos).

A Igreja, tal como os rabinos, sempre usou o critério da maioria, do consenso, para as decisões sobre os dogmas nos Concílios, para a escolhas dos Papas, dos bispos etc.

Como destacou Santo Agostinho, há uma ordem natural na vida (“ordem humana das coisas”, cf. Pio IX, na “Noscitis et Nobiscum”, de 08.12.1849), que é pautar-se pela luz natural da razão, da consciência, para o bem comum.

No mesmo sentido, Pio IX, no “Syllabus” (08.12.1864), condenou a tese normativista que ensina que “O Estado, sendo a origem e fonte de todos os direitos, goza de um direito que não é circunscrito por limite algum”. O direito nasce do povo, da consciência das pessoas, vem de Deus, por meio do povo, como a soberania, pois o direito é a soberania, o poder de fazer regras para a própria vida, para a autogestão pessoal e social, para a autodeterminação (autonomia) pessoal e social. 

O Estado deve elaborar o direito positivo, mas não de forma ilimitada e sem controle, e sim explicitando, completando, protegendo e detalhando as idéias práticas da sociedade, idéias que estão em correlação intrínseca com o bem comum, com a utilidade geral. Ideias que nascem do diálogo do povo, do espírito do povo, como bem destacou Hegel e também Gans. 

O “Sílabo”, de Pio IX, no item 40, deixa claro, neste sentido, que “a doutrina da Igreja” não “é contrária ao bem e aos interesses da sociedade humana”, repetindo a antiga lição de Montesquieu, que ensinava que a religião é a principal fonte da prosperidade, do bem comum.