O bispo Dom Felix Antônio Dupanloup, uma das grandes estrelas da Igreja Católica

O grande bispo Felix Antônio Dupanloup (1802-1878) apenas explicitou as idéias de Pio IX no livro que compôs sobre a lei natural, com o título correto de “A lei social” (1850).

Dupanloup também redigiu uma explicação sobre o “Sílabo”.

A explicação de Dupanloup dos termos sucintos (passíveis de várias interpretações, criadas pelos reacionários) do “Sílabo” foi recomendada por Pio IX, pois explicava o significado correto das teses sucintas condenadas. Mais de 600 bispos aprovaram o comentário de Dupanloup sobre o “Sílabo”, mostrando que existe uma base racional nos textos do “Sílabo”.

Esta base racional estava e ainda é distorcida pois a forma cortante e negativa do texto ajudava na distorção.

O mesmo ocorreu nos textos mal redigidos e negativos de Pio X, aqui entre nós. Já os textos positivos de João XXIII são claros e luminosos como cristais, como diamantes ou topázios azuis.

Pio IX quis dar a Dupanloup o chapéu de cardeal, como prova de apreço. Dupanloup poderia ter sido maior que Leão XIII. No entanto, Pio IX foi obstado por inimigos reacionários deste bispo, na França. Os textos de Dupanloup sobre o “Sílabo” incomodaram os poderosos.

Os textos de Dupanloup sobre a importância da Paidéia (num atrito contra o padre Gaume) e sobre educação são atuais até hoje e deveriam ser reeditados.

Dupanloup foi da Academia Francesa e foi um dos maiores bispos franceses, tendo obtido a reconciliação de Talleyrand com a Igreja, no final da vida deste político.

Dupanloup escreveu o livro “Alta educação”, onde faz uma apologia da filosofia (L. II, os quatro primeiros capítulos), que é, no fundo, a apologia da razão (a mesma linha de Mercier, Manning e outros luminares da Igreja).

O grande bispo Félix Dupanloup (1802-1878), num texto com a chancela do Vaticano, explicava que a doutrina social da Igreja opera com base na natureza humana, mergulhada no rio da história, com concretude, atentas às circunstâncias e necessidades específicas e concretas dos tempos.

Dupanloup foi um dos maiores bispos da Igreja, tendo inclusive redigido uma linda “Carta ao clero da diocese sobre a escravidão” (em 1862), documento que foi traduzido no Brasil, em 1865, sendo muito usado no movimento abolicionista. Por exemplo, o “Manifesto da Confederação Abolicionista” praticamente abre o texto citando as condenações dos Papas à escravidão.

Mais tarde, Joaquim Nabuco foi até o Vaticano e colheu uma encíclica papal de Leão XIII condenando novamente a escravidão e esta encíclica, o posicionamento firme da Igreja (com homens como Dupanloup e mesmo Gregório XVI), foi um dos fatores para a Lei que proibiu o tráfico negreiro e, depois, para a Lei Áurea, de 13.05.1888, com seu texto enxuto, de dois artigos: “é declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil” e “revogam-se as disposições em contrário”, sem indenização alguma aos escravocratas.

A posição clara do Vaticano foi decisiva para a vitória do movimento abolicionista.

Joaquim Nabuco, um dos maiores católicos do Brasil, queria também a reforma agrária, ponto que ficou faltando, tal como ficou faltando a indenização aos escravos e a seus descendentes (as cotas são formas de reparação, bem insuficientes, tal como são formas de dar concretude ao princípio da igualdade material das pessoas).

Vejamos alguns trechos do livro “A lei social”, de Dupanloup (colhidas no livro de Fernando Bastos de Ávila, “O pensamento social cristão antes de Marx”, p. 315/316), onde fica claro como a democracia é co-natural. Como o regime democrático popular é o regime político mais condizente com a dignidade humana (cf. frase de Pio XII), com nossa natureza pessoal e social:

Deus, que fez o ser humano à sua imagem e semelhança, o fez também, e por isso mesmo, para o convívio com seus semelhantes e instituiu assim a sociedade à imagem da sociedade divina: “Sint unum sicut et nos” [“sejam um, como Nós somos Um”, à imagem da Trindade).

Deus, que é vida, inteligência, amor, verdade, beleza e bondade supremas, fez o homem para uma vida em sociedade, vida de inteligência e amor, quis que existisse entre todos os homens, que são seus filhos, um relacionamento constante baseado na verdade, na bondade, na beleza intelectual e moral [no diálogo, e não na violência ou mentira, os atributos divinos são os atributos de uma boa sociedade, de uma sociedade democrática].

Quis que existisse entre eles… um Bem público, um Bem comum, um Bem social.

Mas, que é esse bem comum, qual a sua essência? Que é, em conseqüência, a lei social? Só podem ser o bem e a lei que se referem essencialmente ao homem. Com efeito, os homens, pelo fato de participarem da vida em sociedade, não mudam nem de natureza, nem de lei, nem de fim, nem de objetivo. Ao contrário, a sociedade se institui para aperfeiçoar-lhe a natureza [humana e em geral], ajudá-lo em seu nobre desenvolvimento, fazê-lo melhor alcançar seu objetivo e permitir-lhe realizar melhor seu destino. É unicamente para melhor atingir o Bem que os homens se associam, é para se aprimorarem, se fortificarem e se aperfeiçoarem mutuamente.

A vida, a verdade, a inteligência, a sabedoria, a bondade, a caridade, a justiça, eis o Bem social. A conservação e o aperfeiçoamento de todas essas nobres prerrogativas do homem, a elevação de todas essas belas faculdades que são a doçura, o encanto e a glória da humanidade, o amor e a proteção desses dons divinos que constituem a riqueza, a força e o bem da sociedade humana, eis o único objetivo, a única razão essencial da lei social.

A lei social é pois simplesmente a grande e imortal lei do amor… (…)

Todas as demais leis da sociedade humana devem ser-lhe conformes [às regras racionais do bem comum], isto é, devem ser essencialmente, de uma forma ou de outra, leis de amor para com Deus e para com os homens.

Assim, elas são a expressão e a lei do Bem: do Bem supremo e infinito que é o Bem de Deus…, do bem finito e particular, que é o bem do homem e, enfim, do bem comum e social que é o bem de toda a humanidade.

Poderão existir diversas formas de sociedade civil e política, mas nenhuma sociedade poderá ter outro fim, outro objetivo, outro meio de aperfeiçoamento, nem outra lei.

As leis humanas nada mais podem ser que a expressão, a aplicação, a interpretação e a explicitação da lei única e suprema [do bem comum, universal], sem o que não são lei”.

Dupanloup explicou que a “lei social” do “bem universal” (a “lei de amor”) “foi escrita por Deus na consciência mesmo do homem e em seu coração” (na estrutura do ser humano). Na mesma linha de Tomás de Aquino e de Santo Agostinho, Dupanloup explicou que esta imagem (metáfora, símbolo) usada por São Paulo significa que a “lei natural” (“social”, o conjunto das regras do bem) é fruto natural da “luz da razão natural”, que se obscurece gradualmente na medida em que agimos de forma irracional.

A lei natural é o conjunto das regras naturais, das idéias naturais e práticas da razão, ponto que Leão XIII repetiu, na “Libertas”, como veremos em outras postagens desse meu humilde blog.

Ainda no livro “A Lei Social”, Dupanloup destacou que a parte ética da Revelação (as regras dos “Dez mandamentos”, detalhadas nas regras das virtudes etc) constitui uma consagração (e não inovação) das regras sociais e naturais do bem comum. Estas regras naturais são regras racionais.

Afinal, a parte ética da Revelação é quase toda racional, sendo apenas uma pequena parte supra-racional. A parte ética da Revelação, nos termos de Dupanloup, “tende à conservação” do ser humano, “da família e de toda a sociedade humana” (da natureza humana e da natureza em geral), estando assim “consagrada”, “com uma simplicidade, uma fecundidade, uma concisão e uma força verdadeiramente divina”.

No texto do bispo Dupanloup, fica evidente que os preceitos (as idéias práticas, regras) racionais da razão humana, que formam a “lei natural” ou a ética racional, são os mesmos preceitos éticos e racionais da Revelação, dentro do modo humano e nos limites humanos. Assim, o jusnaturalismo cristão é a maior apologia já feita à razão humana, pois a Revelação, na parte ética, apenas chancela as luzes da razão.

A “lei natural” é a “lei social”, é o conjunto de regras sociais e naturais da razão humana, um conjunto de preceitos (idéias práticas, da razão prática) que cresce no decorrer do processo histórico, tal como cresce a cultura, o saber, o conhecimento.

Viver de acordo com a consciência é uma regra que vale para cada pessoa e para a sociedade. Esta regra fundamental é a base da salvação. Afinal, é uma prática salvífica seguir a voz de Deus, que ecoa na consciência humana, pelo modo humano de gerar, criar idéias. O que santifica (beneficia) a pessoa também santifica e beneficia a sociedade.

Viver de acordo com a própria razão (consciência) é praticar atos bons, atos adequados e úteis ao bem comum. Viver de acordo com a consciência é agir racionalmente em prol do bem comum. Em outras palavras, é praticar “virtudes” (que são idéias, atos e hábitos racionais adequados ao bem comum), pautando as ações em prol do bem comum, do próprio bem e da sociedade.

O melhor conceito para o termo “virtude” é, assim, o conceito de Platão, de Aristóteles e dos estóicos. Virtudes são formas do bem, são atos pautados pela idéia do bem. Virtudes são “atos bons e racionais”, como pode ser visto nos dicionários, que recolheram a recepção popular a estes conceitos e as idéias do povo.

A Igreja também acatou o conceito de “homem honesto” (justo, bondoso), de Cícero, que significa a pessoa que vive racionalmente, de acordo com o bem comum.

Em outros termos, é o “justo” da Bíblia, o que pauta a vida em prol do bem comum, da justiça natural, social. Por isso, há frases como “o justo” que brilhará como as estrelas, após a morte, na colheita do que plantamos enquanto estamos nesta carne perecível, nesta vida perecível, que é parte do processo em direção à renovação total, que nunca cessa, está sempre em devir, pois Deus tudo melhora no tempo.

Os atos justos são atos de luz, são atos racionais, do bem comum, são atos que concretizam as idéias que brotam da consciência, em interação com as demais consciências pelo diálogo e em interação com a natureza, com a realidade, com a história, com o tempo.