As teorias católicas sobre o Estado são teorias democráticas, exigindo Estado social, democracia participativa, economia mista

Entre os católicos, houve duas teorias principais que tentaram explicar o “poder político”, o Estado: 1ª) a teoria da translação, também conhecida como da transmissão ou soberania do povo, que é mais antiga e tradicional, sendo a teoria clássica da Paideia, aceita pela Igreja; e 2ª) a teoria da designação, de fundo historicista, ligada à escola histórica, formulada principalmente pelo padre Taparelli.

Sobre estas duas teorias, é esclarecedor um comentário do Cardeal Alfredo Ottaviani. Este cardeal foi o Prefeito do Santo Ofício durante os pontificados dos Papas Pio XII, João XXIII e Paulo VI. Na época, o cargo de Prefeito do Santo Ofício era o segundo na hierarquia da Igreja. Ottaviani foi o líder dos cardeais conservadores no Concílio Vaticano II e era criticado por Alceu Amoroso Lima, nas cartas que enviava a sua filha. No entanto, mesmo Ottaviani, no tratado que escreveu “Instituições de Direito Público Eclesiástico” (“Institutiones Iuris Publici Ecclesiasti”, vol. II, Ius Publicum Externum (Ecclesia et Status), 3ª. Edição, Typis Polyglottis Vaticanis, 1948, p. 34), ressalta que estas duas teorias não são excludentes, tendo “discrepâncias” “mínimas”:

“… entre as duas sentenças, a discrepância não é tanta quanto parece à primeira vista, e muito embora não possa ser completamente suprimida, ao menos pode ser reduzida a têrmos mínimos.

(…). Quanto, porém, a definir em concreto o sujeito da autoridade numa determinada sociedade – porque o abstrato e indeterminado não existe – a questão está apenas em definir o modo pelo qual o sujeito é designado. E ainda aqui não é tão grande a divergência: pois a segunda sentença assevera que às vezes pode acontecer que o sujeito da autoridade seja determinado por um consentimento livre, quando, por exemplo, famílias ou indivíduos totalmente independentes entre si, e não ligados por nenhum vínculo comum de direito, espontaneamente constituem uma sociedade. E que, além disso, pode uma comunidade reservar algum exercício do poder, designando-se a si mesma por sua parte, qual sujeito do poder”.

No mesmo texto, Ottaviani cita um teólogo chamado Gredt (citado com elogios por Alceu, no livro “Política”), que defendia uma “via média”: o poder civil reside imperfeitamente no povo, que o transfere de um modo transeunte e instrumental ao governante, aos agentes públicos, via eleições, concursos etc.

Ketteler, Carlos Perin, Hergenröhter e outros grandes autores demonstraram os pontos comuns das duas teorias, pois elaboraram teorias mistas, conhecidas como teorias providenciais, também ligadas à Escola Histórica de Direito e Economia, teorias que mostram que o bom Deus age na história por mediação humana, o Espírito Santo atua nas consciências das pessoas.

Perin, na França, redigiu uma memória sobre a usura que impediu um projeto de lei que daria “liberdade” à usura, um maldito projeto neoliberal avant lettre, antecipado.

As escolas mistas, em geral com um fundo historicista, explicavam que o poder vem de Deus mediante “os sucessos e as vontades humanas”, logo, mediante o movimento natural e histórico das inteligências, pelo consentimento, pelo movimento natural da sociedade. Numa linha parecida, esta era a teoria da colação imediata do poder através de acontecimentos históricos e sociais.

Nas duas teorias, o poder vem de Deus como fonte primária, pois está vinculado à ética, aos ditames da consciência divina que estão em consonância com os ditames da consciência humana. Assim, obedecemos leis justas porque estão em consonância com a ordem natural (racional, social, expressão do bem comum), em outros termos, porque as leis justas coincidem com as regras naturais e racionais da consciência moral (vinculada ao bem comum). Mais simples – obedecemos quando as leis estão em adequação ao bem comum, quando são explicitações das ideias práticas do povo, do diálogo do povo. A causa é simples: somos feitos à imagem e semelhança de Deus, tendo uma inteligência que apreende verdades objetivas, hauridas da realidade, que é a primeira mediação da comunicação com Deus. As exigências do bem comum aparecem, em nossa consciência, como regras éticas e racionais.

As duas teorias admitem que Deus não age diretamente. Deus age mediante o povo, pela sociedade (com sua história, geografia, circunstâncias etc), que constitui e/ou indica o governante. A pessoa que exerce o poder está vinculada ao direito natural, ou seja, ao conteúdo normativo presente na consciência de todos, do povo, pois o poder está vinculado aos ditames da consciência, da inteligência, como ensinaram Jeremias, Ezequiel, São Paulo e outros.

Nestas duas teorias, caso o governante (ou o Parlamento ou o Judiciário, os agentes públicos, agentes políticos, enfim) determine algo iníquo – que fere a vontade profunda do povo, ou seja, os ditames da consciência da sociedade – há o direito de revolução, tal como o direito à desobediência civil, à objeção de consciência e, principalmente, há o direito do povo de interpretar a norma, humanizando-a.

A hermenêutica é uma via média entre a obediência e a desobediência. Por isso, foi tão elogiada pelos jusnaturalistas e pelos teóricos do direito alternativo. Via média, no sentido que se a lei for claramente iníqua (irracional, não condizente com o bem comum), deve ser desobedecida, se for mais ou menos, deve ser interpretada à luz do bem comum e seguida no sentido racional.

Da mesma forma, as duas teorias coincidem ao admitir que podem existir formas variáveis e históricas de escolha ou designação, que são, no fundo, como resumiu José Pedro, “manifestações da liberdade humana na constituição das sociedades”. A teoria de Taparelli destaca o peso das circunstâncias históricas e adota um jusnaturalismo de fundo histórico-jurídico, como detalhado mais adiante.

A teoria da designação foi formulada por Taparelli, mas está presente antes, como influência da Escola Histórica e o historicismo serviu como crítica aos erros capitalistas, na parte boa do historicismo. Está também presente em alguns textos de Leão XIII. Pio XII (num discurso no Tribunal da Rota, em 02.10.1945) lembrou que a teoria da designação não exclui a “tese, que ilustres pensadores cristãos em todo tempo têm defendido, de que o objeto originário do poder civil derivado de Deus é o povo”. O ponto central é justamente este: o povo, a sociedade, é a fonte imediata do direito autêntico, do poder como deve ser, pois a sociedade é uma das mediações entre Deus e as pessoas.

Conclusão: Pio XII ressaltou que o poder vem imediatamente do “povo”, e não da “massa”. Ou seja, a soberania cabe ao povo organizado, de forma livre, em milhões de estruturas intermediárias entre as pessoas e o Estado.

O próprio Estado é também uma instituição imersa na sociedade, devendo ser controlada pela sociedade organizada, como ressaltaram Hauriou, Renard e outros, da escola institucionalista. As organizações, associações, órgãos são mediações do controle popular sobre o Estado, sendo a base de uma autogestão ampliada, que combina o máximo de socialização com o máximo de personalização.