O socialismo cooperativista de Anatole France era próximo da Igreja

Anatole France (n. 1844), como pode ser visto no livro “Anatole France, uma vida sem ilusões” (sem autor no exemplar que li, São Paulo, Ed. Assunção, sem data, trad. de M. C. Wagner Vieira da Cunha), tinha idéias sobre a democracia com fundo jusnaturalista hebraico e cristão, tal como no melhor da literatura francesa e antiga.

Na carta aos soldados da França, na primeira guerra mundial, France escreveu (p. 353 da obra referida): “o que estais defendendo é a vossa terra nativa”, “são os seus campos e as suas campinas… o que estais defendendo é o próprio campanário de vossa igreja, vossos tetos de tijolos e ardósia, os túmulos de vossos pais e os berços de vossos filhos”, “nossas… cidades, alinhando ao longo das barrancas dos rios os monumentos de gerações”, enfim, o patrimônio material comum. Mais ainda, “o que estais defendendo é o nosso patrimônio moral, nossos costumes, nossas leis, nossos hábitos, nossas tradições”, “as obras de nossos escultores, nossos arquitetos, nossos artistas”, “o canto de nossos músicos”, “a língua que por oito séculos floriu sem cessar nos lábios de nossos poetas, nossos oradores, nossos historiadores, nossos filósofos; é a ciência do homem e da natureza”, “o gênio francês, que deu luz ao mundo e trouxe liberdade à nação”.

No discurso proferido no enterro de Zola, Anatole disse (p. 266): “não há paz em lugar algum, exceto na justiça, nenhum repouso senão na verdade. Não falo da verdade metafísica… falo da verdade moral que podemos alcançar, porque esta é relativa, sensível em conformidade com a nossa natureza, e está tão perto de nós que uma criança pode tocá-la com sua mão”. Disse ainda “quão admirável é o gênio de nossa terra! Como é bela a alma da França, que, desde os séculos passados, tem ensinado o direito e a justiça à Europa e ao mundo! A França é outra vez a terra da razão – e dos pensamentos benevolentes, o solo da magistratura eqüitativa, o berço de Turgot, de Montesquieu, de Voltaire, de Malesherbs. Zola bem honrou o seu país, não desesperando da justiça na França” [no caso Dreyfus].

France criticara um dos piores livros de Zola, “A Terra”, por não este não ver que “há em todos nós, no grande como no pequeno, no humilde como no orgulhoso, um instinto do belo, um desejo por tudo que adorna e embeleza”, que “faz o encanto da vida”, “Zola não sabe disto. Há na terra formas magníficas e nobres pensamentos. Até muitas fraquezas, muitos erros, e muitas faltas, encerram uma comovente beleza”, mas reconheceu a importância ética dos livros de Zola, especialmente as últimas obras deste autor, onde Zola defende um socialismo cooperativista bem próximo da doutrina da Igreja.

O “ceticismo” de France foi definido por ele mesmo, quando tinha quase 80 anos, perto da morte. Ele escreveu (cf. p. 366 da obra citada acima), que era discípulo (“humilde estudante”) de “Rabelais, Montaigne, Molière, Voltaire e Renan” e que estes homens, tido como céticos, “foram os homens mais afirmativos e corajosos. Eles repudiam apenas as negações. Atacam todos aqueles se opõem à inteligência e à vontade. Lutam contra a ignorância que humilha, contra o erro que oprime, contra a intolerância que tiraniza, contra a crueldade que tortura, contra o ódio que mata”. Estes homens tinham “profunda compaixão”, “desta compaixão” alimentaram “um amor fraternal”, “piedade” etc e que eram homens que “perdem-se no combate para salvar seus infelizes irmãos… Em suma, eles são os mais idealistas dos mortais”. France se considerava discípulo também de Racine (cuja morte cristã foi descrita por France, com admiração), Montesquieu e Goethe. Seu ceticismo não é destrutivo e negativo, pois reconhecia a importância da religião, de todas as religiões.

Seu “ceticismo” idealista não negava a existência da verdade, apenas entendia que “a conquista das verdades que conduzem à felicidade do homem é uma coisa vagarosa e difícil, e a raça humana está emergindo dolorosamente e pouco a pouco de seu primitivo barbarismo” (p. 252).

Em 1922, France publicou seu último livro, “A vida em flor”, onde escreveu: “amo a verdade. Acredito que o homem precisa dela; mas, certamente, ele ainda precisa mais das ilusões que encorajam, consolam, e não lhe impõem limite às suas esperanças e aspirações”.

Sobre o socialismo, e ele morreu no seio do partido socialista, France escreveu: “parece-me que o socialismo, que luta pela verdade, deveria também lutar pela justiça e bondade, que tudo que é justo e bom deveria originar-se dele tão naturalmente como a maçã cresce da árvore”. E completou: “em minha opinião, tudo que é eqüitativo é um começo de socialismo” e “todas as sociedades cujos órgãos não mais correspondem às funções para as quais foram criadas, e cujos membros não são recompensados de acordo com o trabalho valioso que realizam, morrem”.

Conclusão: a Igreja criticou os textos hedonistas de France, mas não há, em seus textos mais relevantes e éticos, idéias em conflito com a doutrina da Bíblia ou do jusnaturalismo.